pense

"Eles tentaram nos enterrar, mas não sabiam que éramos sementes! "

Proverbio mexicano

sexta-feira, 26 de junho de 2015

Morreu Silvano Fausti, o biblista das periferias


Quando um incêndio devastou a casa de fazenda Villapizzone, na periferia de Milão, grande parte dos seus livros queimaram, 80 metros de prateleiras, milhares de textos em hebraico e volumes raros, comentários do século XVII, livros de exegese e filosofia em várias línguas. Aos amigos consternados, ele respondia com um sorriso: "Ainda bem que eu os tinha lido".

A reportagem é de Gian Guido Vecchi, publicada no jornal Corriere della Sera, 25-06-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O padre jesuíta Silvano Fausti morreu nessa quarta-feira de manhã, 24, depois uma longa doença que não pôde apagar a sua serenidade. Ele tinha 75 anos e, desde os 37, vivia naquela casa de fazenda às margens da cidade, além dos gasômetros da Bovisa e da linha ferroviária.
Quatro jesuítas e uma comunidade de famílias para compartilhar recursos, espaços, vida, segundo o modelo dos Atos dos Apóstolos. Como repetiria Francisco, o coirmão que se tornou papa, ele considerava a periferia como "um lugar privilegiado" para entender a polis: "Vivendo com pessoas que estão de propósito ou por necessidade às margens, você entende o que a sociedade descarta ou joga fora. O princípio da economia é produzir cada vez mais. Mas do que me interessa produzir mais? Interessa-me viver. Hoje, a cidade é o lugar da perda de humanidade, e os homens acabam na descarga: as crianças, os velhos, aqueles que estão em necessidade".
Ele tinha estudos em filosofia e teologia, doutorado em fenomenologia da linguagem em Münster. Quem não o conhecia, não imaginaria que esse homem de calça jeans, sandálias e camisa xadrez, dedicado a varrer as folhas secas de manhã, era um dos autores mais lidos e influentes do pensamento cristão contemporâneo.
O cardeal Carlo Maria Martini o tinha escolhido como padre espiritual e confessor. Ao lado do caminho de Villapizzone e na igreja dos jesuítas de San Fedele – por muito tempo junto com o padre Filippo Clerici: ele morreu em 2008, e foi a maior dor dos seus últimos anos –, ele continuou por décadas, a cada semana, a sua "catequese narrativa", a leitura e o comentário dos quatro Evangelhos e os Atos. Os livros que as reúnem estão entre os seus textos mais amados.
"As pessoas não ouvem aquilo que você diz, ouvem o que você sente. Por isso, durante uma lectio, nunca sou eu que leio o Evangelho. A eficácia da palavra oral está nesse sentir interior. Caso contrário, você pode fazer considerações vazias ou doutas, ou repetir o que outros pensaram, e tudo será fingido".
No livro autobiográfico Sogni allergie benedizioni [Sonhos, alergias, bênçãos], ele havia escrito: "Sonho com um papa que convoque um Concílio. Não um Vaticano III, mas umJerusalém II. Para 'desreligionizar' a Igreja em sentido barthiano, ou ao menos desclericalizá-la em sentido cristão, ou ao menos desocidentalizá-la em sentido católico, ou ao menos desromanizá-la em sentido evangélico, ou ao menos descurializá-la em sentido apostólico". Ele foi publicado quando Francisco foi eleito.
Em 2014, ele escrevera um texto para a noite que a revista Popoli, em San Fedele, dedicou ao primeiro ano do pontificado: "'Cheirar a ovelha' é o lema do pastor de Roma. O seu cheiro é o mesmo das ovelhas. Ele está com elas dia e noite". Uma reflexão vertiginosa: "É a cruz de Jesus – distância que ele pôs entre si e as nossas ideias sobre Deus – que o revela como Deus. Com todo o respeito de todos, é preciso dizer não 'Jesus é Deus', mas 'Deus é Jesus'. O sujeito, de fato, é o incógnito do qual se conhece o predicado. Mas nenhuma teólogo jamais viu a Deus: é o 'sujeito' do qual tudo fala, mas só por analogia. O seu 'predicado' próprio e total é Jesus".
Quando morreu um coirmão seu, o padre Silvano contava, sorrindo, o olhar de alegria no momento da despedida: "Por toda a vida, busquei o rosto de Jesus. Em breve poderei revê-lo".
Sexta, 26 de junho de 2015 in Instituto Humanitas Unisinos

Laudato Si’ – Prestemos atenção às notas de rodapé

escreve Kevin Ahern, eticista teológico e professor assistente de Estudos Religiosos na Manhattan College, em artigo publicado pelo sítio America, 18-06-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
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Além da utilização de uma linguagem inclusiva de gênero – a primeira nas encíclicas sociais católicas –, um dos aspectos mais surpreendentes de Laudato Si’ são as notas de rodapé. Para ser honesto, elas foram uma das primeiras coisas que olhei. Francisco se afasta da tradição das encíclicas sociais católicas ao citar várias fontes não católicas oficiais, tais como documentos da ONU, as conferências episcopais nacionais e, de modo mais surpreendente, um místico sufi!
Agora, embora possa parecer um tanto pedante para a maioria dos leitores, as notas de rodapé de Francisco constituem um afastamento significativo da tradição. A maioria das encíclicas papais oficiais do ensino social católico têm um estilo específico e as notas de rodapé desempenham um papel importante. Diferentemente das citações que meus alunos usam em seus trabalhos para referirem a origem das ideias apresentadas, as notas de rodapé no ensino papal têm funcionado como uma forma de alertar o leitor para a continuação de uma tradição. Em geral, as notas de rodapé não estão muito preocupadas em fazer referências propriamente; estão mais interessadas em comunicar que este ensino está harmonia com uma longa tradição no assunto, mesmo quando ele pode estar discordando ligeiramente da fonte.
Por exemplo, a Caritas in Veritate, a encíclica social de 2009 do Papa Bento XVI, dispõe de 159 notas. A maioria delas fazem referência aos ensinamentos sociais oficiais de outros papas; várias destas notas se referem aos seus próprios ensinamentos; algumas mencionam os escritos de importantes santos ou dicastérios vaticanos. Nenhum menciona fontes não católicas ou não doutrinárias. Em grande parte, é assim também com as encíclicas sociais de São João Paulo II.
Esta tradição reflete uma teologia específica do papado que entende que o papa deva ser o professor principal da doutrina católica com uma rígida divisão dos papéis entre professor e aluno. Como tal, o papa nunca precisaria aprender de fontes “abaixo” dele. Isso também inclui as declarações emitidas pelas conferências nacionais dos bispos. Por mais de perto 50 anos, tem havido um longo debate quanto ao estatuto do magistério das declarações feitas por grupos de bispos em nível nacional, continental e mundial.
Sob os pontificados de João Paulo II e Papa Bento XVI, as publicações sociais das conferências episcopais nacionais e dos sínodos foram percebidas como carecendo de competência para um ensino (magisterial) com autoridade. Esta alegação é feita frequentemente pelos críticos das políticas sociais da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos – USCCB (na sigla em inglês), em particular contra os seus ensinamentos sobre a justiça econômica, a paz e o racismo. Em Evangelii Gaudium, o Papa Francisco abordou este ponto quando pediu pelo desenvolvimento do “estatuto das Conferências Episcopais” com “autêntica autoridade doutrinal” para melhor servir a missão da Igreja (n. 32).
Embora não tenha sido bem recebida por todos, Laudato Si’ afirma a autoridade destas estruturas regionais com 20 citações de declarações de 18 conferências episcopais nacionais e regionais. Isso inclui o documento da USCCB, de 2001, intitulado “Global Climate Change: A Plea for Dialogue, Prudence and the Common Good”. A seleção de documentos de várias regiões do mundo parece querer significar algo referente às preocupações expressas pelos bispos quanto aos problemas em jogo. Com efeito, ela construtivamente mostra como a promoção de uma ecologia integral não é apenas a preocupação do Papa Francisco. Embora sutil, é também um aceno para uma visão indutiva e mais descentralizada de Igreja, onde as declarações (os documentos) das conferências episcopais têm valor na formação do ensino social católico universal.
Além de quebrar a tradição ao citar textos de conferências nacionais, o Papa Francisco lança mão de uma gama de pensadores católicos. Ele cita oito vezes Romano Guardini, sacerdote e teólogo influente (1885-1968). Faz uma referência surpresa para o controverso jesuíta Teilhard de Chardin, na nota n. 53, e cita por extenso o Patriarca Bartolomeu no início do texto. Faz também referência a um livro [de John Chryssavgis] publicado pela Fordham University Press, na nota n. 15.
Talvez a referência mais surpreendente é a um místico sufi muçulmano, Ali al-Khawas, na nota n. 159, que diz:
“Um mestre espiritual, Ali Al-Khawwas, partindo da sua própria experiência, assinalava a necessidade de não separar demasiado as criaturas do mundo e a experiência de Deus na interioridade. Dizia ele: ‘Não é preciso criticar preconceituosamente aqueles que procuram o êxtase na música ou na poesia. Há um ‘segredo’ subtil em cada um dos movimentos e dos sons deste mundo. Os iniciados chegam a captar o que dizem o vento que sopra, as árvores que se curvam, a água que corre, as moscas que zunem, as portas que rangem, o canto dos pássaros, o dedilhar de cordas, o silvo da flauta, o suspiro dos enfermos, o gemido dos aflitos…’”.
Ficamos mais impressionados ainda quando lemos a seção intitulada “Os sinais sacramentais e o descanso celebrativo” (n. 233). De um ponto de vista teológico, a inclusão de textos explicitamente religiosos de fora da tradição católica levanta questões interessantes sobre o desenvolvimento da doutrina: O que significa para um documento oficial de doutrina social citar um místico muçulmano? O que isso diz sobre o papel do Espírito Santo para além da Igreja?
Entre as 172 notas de rodapé desta encíclica, nem todas são de fontes surpreendentes. Os escritos de João Paulo II são citados 37 vezes – o mais próximo é o Papa Bento XVI, que vem em segundo lugar com 30 citações. Enquanto alguns podem tentar distanciar os ensinamentos sociais de Francisco sobre o meio ambiente e a economia dos ensinamentos de seus antecessores, estas referências – e este é o propósito delas – devem ajudar a lembrar ao leitor que ele está se baseando numa tradição profundamente estabelecida de preocupação social.
Tal como acontece com outras encíclicas papais, Laudato Si’ destaca a importância de prestarmos atenção às notas de rodapé. Como digo aos meus alunos nos cursos sobre doutrina social católica: sigam as notas de rodapé. Talvez nos surpreendamos com o lugar aonde elas podem nos levar.

Quinta, 25 de junho de 2015. in Instituto Humanitas Unisinos.


Sete chaves para uma encíclica urgente

Na manhã desta quinta-feira, 18 de junho de 2015, foi publicada a esperada encíclica do Papa Francisco sobre a ecologia. O título, Laudato Si’, é tomado do Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis, e tem como subtítulo “O cuidado da casa comum”. São quase 200 páginas na tradução castelhana, agrupadas em 246 números e acompanhada de 172 notas de rodapé. É, portanto, impossível oferecer aqui um resume e uma avaliação detalhada da encíclica. São seis capítulos, que seguem o esquema já clássico do Ver (capítulo 1), Julgar (capítulos 2 a 4) e Agir (capítulos 5 e 6). Neste comentário nos limitamos a indicar e comentar sete chaves de leitura para uma encíclica e uma temática urgentes.
A reportagem é de Daniel Izuzquiza, SJ e publicada por EntreParentesis, 18-06-2015. A tradução é de André Langer.
[1] A chave científica. Antes de ser publicada, a encíclica e o próprio Papa foram duramente criticados por setores conservadores, sobretudo norte-americanos, querendo aplicar a ela o dito popular ‘sapateiro, aos teus sapatos’. Sem ler o texto, já estavam dizendo que havia erros científicos, que o Papa não sabe de questões científicas e não deve se meter em questões polêmicas. Pois bem, qualquer Papa em qualquer encíclica consulta diversos especialistas, como aconteceu também neste caso. A análise de situação que o texto recolhe baseia-se, de maneira clara, nos consensos científicos do momento.
As afirmações são matizadas, ponderadas e equilibradas. Para referir-me apenas a duas das questões mais polêmicas, sugiro a leitura do número 23, sobre a mudança climática, ou o número 133, sobre os organismos geneticamente modificados. Analisadas as contribuições da ciência, com suas clarezas e suas questões abertas, “sem dúvida é necessário uma atenção constante, que tenha em consideração todos os aspectos éticos implicados” (n. 135).
[2] A chave ético-filosófica. Embora no campo científico a exposição seja comedida, a encíclica contém uma crítica dura e contundente ao “paradigma tecnocrático dominante” (n. 101). Não porque a ciência e a tecnologia sejam más, mas porque “a humanidade de fato assumiu a tecnologia e seu desenvolvimento junto com um paradigma homogêneo e unidimensional” (n. 106). É que, além disso, “o paradigma tecnocrático também tende a exercer seu domínio sobre a economia e a política” (n. 109). Por isso, estamos “diante da urgência de avançar numa corajosa revolução cultural” (n. 114) que permita superar a “grande desmedida antropocêntrica” (n. 116), sem cair no biocentrismo nem “colocar em um segundo plano o valor das relações entre as pessoas” (n. 119).
[3] A chave política também é importante para ler a encíclica, que quis ser apresentada com suficiente tempo antes da Cúpula do Desenvolvimento Sustentável, em setembro de 2015, e a Cúpula sobre a Mudança Climática, em dezembro deste mesmo ano. A avaliação global é clara e negativa: “as cúpulas mundiais sobre o meio ambiente dos últimos anos não corresponderam às expectativas, porque não alcançaram, por falta de decisão política, acordos ambientais globais realmente significativos e eficazes” (n. 166).
Após fazer um chamamento a uma ação política que supere a estratégia eleitoral e as visões de curto prazo, o Papa reivindica “uma política que pense com visão ampla e leve adiante uma reformulação integral” (n. 197) e que deixe de estar dominada pelos interesses econômicos, evitando “uma concepção mágica do mercado, que tende a pensar que os problemas se resolvem apenas com o crescimento dos lucros das empresas ou dos indivíduos” (n. 190).
[4] A chave social. O Papa Francisco está convencido de que se “deve integrar a justiça nos debates sobre o meio ambiente, para ouvir tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres” (n. 49). Como São Francisco de Assis, sabe “até que ponto são inseparáveis a preocupação pela natureza, a justiça para com os pobres, o empenho na sociedade e a paz interior” (n. 10). Por isso, a encíclica fala de iniquidade mundial ou de dívida ecológica entre o Norte e o Sul, e se converte “em um chamado à solidariedade e em uma opção preferencial pelos mais pobres” (n. 158) e denuncia, uma vez mais, a globalização da indiferença. Talvez seja esta uma das insistências do documento, que não vê a ecologia como uma moda esnobe de burgueses acomodados, mas de uma questão chave para as populações empobrecidas de nossa Terra.
[5] A chave cultural. Esta chave desdobra-se em ao menos três assuntos, que somente podemos esboçar. Primeiro, “não se pode excluir a cultura na hora de repensar a relação do ser humano com o meio ambiente” (n. 143), vinculando as ameaças à biodiversidade com os ataques à diversidade cultural, sobretudo das minorias empobrecidas.
Segundo, reconhece que estamos diante de “um grande desafio cultural, espiritual e educativo que implicará longos processos de regeneração” (n. 202), tema ao qual dedica o sexto capítulo, sobre a educação e a espiritualidade ecológica.
Em terceiro lugar, uma relevante questão de gênero literário: como já fez em outras ocasiões, muito chamativamente na exortação Evangelii Gaudium, o Papa Francisco acolhe boa parte dos documentos de diversas Conferências Episcopais de todo o mundo. Nesta ocasião, há mais de 20 referências, de países dos cinco continentes e de entidades de coordenação como o CELAM, na América Latina, ou a FABC, na Ásia.
[6] A chave teológica. Embora a encíclica esteja dirigida a todas as pessoas, crentes ou não (e esta é outra novidade), há nela um desenvolvimento explicitamente teológico. Após o primeiro capítulo dedicado “ao que está acontecendo em nossa casa”, o Papa dedica o segundo capítulo a desenvolver o Evangelho da criação: “a criação só se pode conceber como um dom que vem das mãos abertas do Pai de todos, como uma realidade iluminada pelo amor que nos chama a uma comunhão universal” (n. 76). A partir daqui se recupera o sentido da gratuidade e da contemplação, o destino universal dos bens e a responsabilidade no cuidado da criação, entre outras implicações básicas. “Tudo está interligado, e isto convida-nos a amadurecer uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade” (n. 240).
[7] A chave espiritual. Em sintonia com João Paulo II, o Papa Francisco chama para uma verdadeira conversão ecológica, e acrescenta: “Desejo propor aos cristãos algumas linhas de espiritualidade ecológica que nascem das convicções da nossa fé, pois aquilo que o Evangelho nos ensina tem consequências no nosso modo de pensar, sentir e viver” (n. 216). Continua indicando que “a conversão ecológica, que se requer para criar um dinamismo de mudança duradoura, é também uma conversão comunitária” (n. 219).
Falará depois de gratuidade e gratidão, de sobriedade, de humildade, de paz e de outras “sólidas virtudes” (n. 211). É curioso e significativo que a encíclica termine com duas orações (n. 246), uma para todos os crentes e outra específica para os cristãos. Está em consonância com os destinatários da carta, pois já no começo da encíclica o Papa diz: “quero dirigir-me a cada pessoa que habita neste planeta” (n. 3). Oxalá, cada pessoa possa escutar esta mensagem urgente e comprometer-se com o cuidado de nossa casa comum.

A alegria revolucionária nas palavras de Francisco. Artigo de Carlo Petrini

A opinião é do chef italiano Carlo Petrini, fundador do movimento Slow Food, em artigo para o jornal La Repubblica, 19-06-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto in Instituto Humanistas Unisinos Domingo, 21 de junho de 2015
Francisco, no fim da encíclica Laudato si', antes de propor as duas orações conclusivas, afirma ter feito uma "reflexão jubilosa e ao mesmo tempo dramática". Gostaria de dizer, porém, que é a alegria que prevalece – e afirmo isso como leitor não crente –, embora os pressupostos sejam dolorosos.
É a alegria de poder acreditar em uma mudança revolucionária e em uma nova humanidade. É a alegria que aprofunda as palavras do papa, cheias de esperança, mesmo quando descrevem os piores desastres em que nos encontramos.
Essa encíclica, de fato, é, principalmente, uma dura mas objetiva tomada de consciência sobre a realidade da nossa casa comum, a Terra com a sua Criação. É muito lúcida na análise de quanto dano nós fizemos às coisas e às pessoas, definindo os nossos modelos de desenvolvimento de maneira enlouquecida, razão pela qual deixamos que a nossa política se subjugasse à economia. e a economia, à tecnologia.
Na sua primeira parte, o texto é um perfeito resumo, altamente educativo, da situação em que o mundo se encontra: poluição e mudanças climáticas, a questão da água, a perda de biodiversidade com as consequências da deterioração da qualidade da vida humana, a degradação social, a propagação da iniquidade em um mar de indiferença e de suposta impotência. Um quadro que não deixa margens a dúvidas, nem mesmo científicas.
Ele nos fala da realidade de forma crua, mas não interpretável e, da realidade, na qual várias vezes e de forma nada casual a encíclica se ancora, ele parte para as considerações sucessivas. Saber olhar, com a mesma capacidade de se surpreender e de enternecer pela beleza da Criação própria de São Francisco – essa magnificência está toda no título,Laudato si' – também significa saber compreender um estado humano não mais adequado à casa comum e mergulhar plenamente no nosso tempo.
O apelo a "cultivar e guardar", como está escrito no Gênesis, citado em várias ocasiões, é uma referência a algo antigo e ancestral, que nos pede desde o início dos dias para viver com equilíbrio a nossa natureza mais profunda de seres humanos. Enquanto isso, torna-se um compromisso revolucionário para o futuro. Não há dúvida de que essas palavras representam um dos momentos de virada mais importantes na história da Igreja e, sobretudo, da humanidade.
A novidade está na mensagem universal de Francisco: ele, como não deixou de afirmar desde os primeiros passos do seu pontificado, pretende falar também com quem professa outras fés e aos não crentes, e faz isso escolhendo um tema muito atual, mas também sem tempo, eterno, porque realmente transcende a vida terrena do homem.
Francisco se dirige a todos, como fez João XXIII na Pacem in Terris, em 1963, que dedicou o texto "a todos os homens de boa vontade". Forte é o apelo ao diálogo entre as religiões, entre ciência e religião, entre saberes tecnológicos (e tecnocráticos) e sabedorias antigas, entre paradigmas e entre todos os homens. Que ninguém se sinta excluído das palavras do Santo Padre: ninguém pode ficar indiferente diante da descrição da dramática realidade em que se encontra. Devemos "nos sentir unidos por uma mesma preocupação".
Não são poucos os homens da ciência que previram um futuro em que a raça humana se extinguirá, se continuar consumindo mais recursos do que a natureza dispõe. Além disso, Francisco também escreve: "Se alguém observasse de fora a sociedade planetária, se admiraria com tal comportamento que às vezes parece suicida".
Esses cientistas também concordam em dizer que o fim da humanidade não representaria o fim do planeta, a biosfera sobreviveria à espécie humana, sem muito esforço, implementando os devidos ajustes ao seu complexo sistema de interações entre seres vivos, sejam vegetais ou animais.
"Nós não somos Deus, a terra nos precede e nos foi dada." Por um lado, a hipótese da extinção humana, que eu não considero totalmente improvável, nos faz intuir como até para quem vive uma dimensão espiritual diferente a vida terrena, necessariamente, deve ser atribuída a uma renovada abordagem diante da história do mundo. Por outro lado, tudo isso nos exorta, indistintamente, a interagir de forma mais responsável com o resto das espécies vivas.
É um passo que não pode mais ser prorrogado, para tornar reciprocamente profícuo a nossa existência sobre este planeta e preservá-lo em favor das gerações futuras, mas sobretudo da própria Criação: um sistema tão complexo a ponto de não ser ainda plenamente conhecido pelo homem, em que o indemonstrável – segundo os meios científicos de que dispomos – ainda tem um peso decisivo na ordem das coisas, misterioso para quem não crê, que diz respeito ao próprio íntimo e à fé para os crentes, caracterizado, porém, por uma beleza que nos liga à nossa responsabilidade.
Várias vezes, o papa fala de beleza, como critério estético e espiritual, que deve guiar a nossa ética e a nossa política. A mesma beleza que São Francisco canta.
Na exortação a cultivar e a guardar, para além de um sentido epocal filosófico e teológico que está totalmente na definição de "ecologia integral", entreveem-se também questões candentes que podem ser definidas como políticas: com tal força que nos leva, sem possibilidade de escolha, a uma mudança radical, que deverá renovar o homem e as coisas feitas pelo homem.
No texto de Francisco, não faltam referências a um sistema tecnofinanceiro que não funciona e demonstra a sua incompatibilidade com uma sociedade harmônica e justa. Não só isso, mas também a centralidade da política, entendida como capacidade de desenhar o mundo que queremos e de fazer as escolhas necessárias para realizá-lo, é reafirmada diante de um momento histórico em que a perseguição quase espasmódica do lucro impede que os governantes tomem decisões clarividentes, capazes de imaginar um futuro para além dos prazos eleitorais.